domingo, 24 de junho de 2012

TEOLOGIA CLERICAL E DESCALABRO SOCIAL




Repetidas vezes, em livros e conferências, tenho abordado este tema de candente atualidade - e quase sempre me tem valido esta franqueza o título de anticlericaI. Se sou anticlerical, não o sou por mero esporte e caturrice, mas a isto sou Ievado pelo impacto inexorável de fatos que ninguém pode negar.
Tenho afirmado, e continuo a afirmar, que a mais profunda, e a mais ignorada raiz do nosso descalabro social está na falsa educação religiosa, desde a Idade Média, mesmo desde o quarto século da era cristã. Os resíduos dessa falsa, educação desceram do consciente e se depositaram no subconsciente dos povos, sobretudo latino-católicos, e lá no fundo formaram uma vasta estratificação, que atua imperceptivelmente sobre a vida desses povos.
Os povos nórdicos, não-latinos, graças ao seu pronunciado espírito de autonomia, libertaram-se parcialmente dessa teologia clerical, quando, a partir do século XVI, sacudiram o jugo da tutela de Roma, sede dessa infeliz Ideologia.
A teologia clerical não obriga seus adeptos a serem internamente honestos; pode o católico cometer qualquer pecado, durante a vida inteira; mas, se se arrepender no fim da vida e receber absolvição sacramental pelo clero, está limpo, como se nunca estivera sujo. Se sobrar alguma "pena temporária" a ser expiada no purgatório, qualquer amigo, aqui na terra, a poderá cancelar, mediante uma rápida e cômoda "indulgência plenária". Portanto, não é necessário que o católico evite os pecados, com sacrifícios, honestidade e justiça. Para que esses sacrifícios, se sem sacrifício algum pode conseguir o mesmo efeito? A lei do menor esforço predomina na natureza inteira; e por que deveria o homem sujeitar-se a 50 anos de honestidade difícil, não mentindo, não roubando, não defraudando, se pode conseguir o mesmo efeito em 5 minutos de arrependimento, no fim da vida? Mesmo no caso que esteja inconsciente e não possa confessar-se, a Extrema-Unção, como afirma a teologia, produz o mesmo efeito no moribundo, e a indulgência plenária de um amigo completará, sem sacrifício algum, o que, porventura, falte ainda para a entrada no céu.
Esta teologia comodista, adotada por centenas de milhões de homens, é um convite para todas as desonestidades durante a vida terrestre. Por isto, pode o católico viver despreocupado, no meio dos seus pecados, porque a presença do padre, chaveiro do céu, lhe garante a salvação.
O protestante não se libertou totalmente dessa ideologia funesta, mas reduziu a extrema facilidade da salvação do católico e estabeleceu um método um pouco mais difícil; pois, um ato de fé no sangue redentor de Jesus é menos garantido do que uma confissão da parte do penitente e a absolvição do padre.
Semelhante ideologia é flagrantemente antiética e forma o substrato da consciência desses povos, impossibilitando o triunfo do reino de Deus aqui na terra.
Ora, onde não há consciência de honestidade interna não pode haver verdadeira prosperidade. É fato que os povos latinos, mais afetados por essa infeliz teologia, andam sempre de reboque dos povos nórdicos, onde penetrou mais profundamente a ética sadia do Evangelho.
Sobretudo aqui no Brasil - proclamado aos quatro ventos como sendo "a maior nação católica do mundo" o descalabro social atingiu proporções calamitosas, sobretudo nas classes dominantes. Governo e funcionalismo público, geralmente falando, não se julgam responsáveis perante o povo; recebem o seu salário mensal, produto do suor do povo, e não se julgam obrigados a prestar à nação os serviços correspondentes a esse dinheiro, que vem do povo. A mais clamorosa falta de consciência caracteriza quase todos os departamentos da administração pública, federal, estadual, municipal.
Se o Brasil conseguisse um período, digamos, de 5 anos de administração 100% honesta, estaríamos totalmente livres da inflação interna e da dívida externa. Mas isto exigiria a presença de meia dúzia de homens auto realizados, ou em vias de auto realização - e onde estão esses homens?
Esses homens deviam possuir, em uma só pessoa, dois atributos raríssimos:
1) competência
2) honestidade. Por vezes, encontramos pessoas competentes não-honestas, como também pessoas honestas não-competentes - mas seria verdadeiro milagre encontrar um homem ao mesmo tempo 100% competente e honesto.
No meu livro "Novos rumos para a educação", pus o dedo na ferida, fiz o diagnóstico do mau número um do Brasil e do mundo, e sugeri também o remédio único ao grande mal.
Mas quem estaria disposto a tomar o remédio?
A única crise real que existe no Brasil, e alhures, é a crise de consciência...
As nossas teologias eclesiásticas dominantes relegaram para após-morte o triunfo do reino de Deus, e assim dispensaram seus adeptos de qualquer esforço sério de o realizar, pelo menos inicialmente, aqui na terra, como exigia o Cristo.
A sociedade humana de hoje é composta de duas classes: os exploradores e os explorados. Aos exploradores prometem os nossos teólogos a salvação, contanto que deem uma percentagem dos seus roubos para fins religiosos ou beneficentes, enquanto os explorados recebem a magra consolação de sofrerem mais uns 10, 20 ou 50 anos, porque é pelo sofrimento que o homem se salva, e Jesus foi o maior dos sofredores.
E assim as nossas teologias conseguem narcotizar as consciências de exploradores e dos explorados, perpetuando o status quo da nossa infeliz humanidade e impossibilitando o advento do reino de Deus sobre a face da terra. "Guias cegos guiando outros cegos" - não repetiria o Cristo estas mesmas palavras aos nossos guias espirituais, essas palavras candentes com que ele fulminou os guias espirituais de Israel? Será que alguma coisa mudou?
Enquanto o nosso cristianismo continua a trair o Cristo - sob a bandeira do Cristo! - não há esperança de melhores dias para a humanidade.

Huberto Rohden
“Roteiro Cósmico” (Ed. Freitas Bastos 1966)

SATANÁS




Satanás presta inestimável serviço à Igreja Romana, não só pelo terror que inspira no rebanho embrutecido, como principalmente pelo dinheiro que por seu intermédio canaliza para o saco sem fundo da Igreja. E satanás ou demônio é pau para toda obra, servindo às tentações, às artimanhas, ao ódio, à cobiça, enfim, a uma atividade multiforme para arrastar as almas de Deus às torturas do inferno que a conveniência da Igreja criou e mantém auxiliada pela ignorância que ainda avassala grande parte do rebanho católico.
Nas pregações contra o Espiritismo, os padres apontam como demônios os Espíritos que se manifestam, ainda que esses Espíritos se apresentem como amigos, dando salutares conselhos, dentro do mais puro Evangelho ou curando males crônicos da Humanidade sofredora.
De acordo com a Igreja, Satanás foi expulso do Céu e constituiu um reino à parte, tornando-se, assim, rival de Deus. Nesse caso, se o reino de Deus é partilhado por Satanás, que dirige o reino do mal, então Deus deixa de ser absoluto, uma vez que abdica de atributos.
O saudoso escritor pernambucano Manoel Arão em seu pungente livro - O Claustro, comenta: ‘o demônio existe de toda a eternidade ou foi criado? No primeiro caso, seria incriado e, portanto, igual a Deus; no segundo, seria obra de Deus e Deus não seria perfeitamente bom desde que criasse o mal’.
Como se vê, não há saída que satisfaça à lógica. Aliás, para o rebanho católico, em grande parte obscurecido pelo analfabetismo, não há lugar para a lógica e dela prescinde porquanto os padres o dirigem a seu modo dispensando-lhe até o trabalho de pensar.
E nesse rebanho alheio a qualquer raciocínio está o grosso do Catolicismo. Nesse meio, Satanás tem muito o que fazer para regalo da Igreja que, assim, o conserva como uma fonte perene de benefícios próprios.
Sabem os católicos instruídos, embora não discrepem, que demônio (daimon), entre os gregos antigos, significava Espírito, havendo o bom e o mau, como, por exemplo: o bom demônio de Sócrates. Platão chegou a chamar a Deus - demônio onipotente (agathoaemones) e os maus (cacodaemones) eram intermediários entre os deuses e os homens.
Satanás, como se sabe, não passa de uma alegoria, representando apenas o mal, o qual não é eterno conforme divulga, de má fé, a Igreja Romana, para melhor proveito junto à massa supersticiosa que ainda acredita em pleno século XX, no inferno de ardentes caldeiras, no enxofre fervente e no demônio de chifres e pés de pato. E muitos padres, principalmente nos lugarejos do interior, justificam esse recurso afirmando que o mesmo é necessário para regenerar o povo, quando o certo seria elucidá-lo, esclarece-lo para melhor conpreensão da Justiça Divina. Isso, porém, não lhes convém, pois o raciocínio levaria o povo a outras conclusões. A ignorância é muito útil ao clero católico.
Se a Igreja de Roma, nos tempos do seu poder absoluto, foi incapaz de regenerar a Humanidade, impossível seria conseguí-lo na época presente em que a Humanidade inteira tem a faculdade de se esclarecer, de pensar e de escolher o caminho conforme a razão.
Satanás que é apenas um símbolo, continua a servir a Igreja como instrumento de terror e de fazer dinheiro.
Esta é a verdade.
Oswaldo Valpassos
Reformador (FEB) Outubro 1957

COLLIGNON E “OS QUATRO EVANGELHOS”




No dia 25 de dezembro do ano de 1902, desencarnava, em Quimper, sede do Departamento de Finistère, a extraordinária médium francesa Emilie Collignon (Bréard, enquanto solteira). Foi através de suas faculdades, como se sabe e se agradece, que os evangelistas ditaram as explicações contidas na notável obra “Os Quatro Evangelhos” ou a “Revelação da Revelação”, posteriormente coordenada pelo bastonário bordelês Jean-Baptiste Roustaing.
Infelizmente, há muito pouco que dizer sobre a vida de Mme. Collignon, senão os escassos dados conhecidos e que reuni em meu livro inédito “A Posição Zero”. As grandes figuras, entretanto - particularmente quando lhes sobressai a humildade -, deixam sempre raros registros, cabendo à posteridade a pesquisa lenta e progressiva, até que se lhes levantem todos os contornos biográficos. É o mesmo caso das médiuns que funcionaram com Allan Kardec, cujas vidas continuam quase completamente desconhecidas.
De Mme. Collignon o que se sabe é que foi mãe de um dos prefeitos de Paris, que era médium mecânica e que, visitada por Roustaing, iniciou, a partir desse encontro, a sua abnegada missão de intermediária dos altos Espíritos que lhe ditaram a maior obra de todos os tempos, depois, logicamente, de “O Livro dos Espíritos”. Outros detalhes desse encontro se acham em meu livro e não pretendo antecipá-los. Este artigo é apenas uma homenagem espiritual à sua memória, menos para biografá-Ia do que para defender o seu trabalho, frequentemente arrastado à liça das acusações e invariavelmente criticado pelos que teimam em ver nele uma contradição com “O Livro dos Espíritos”. (Mais realistas que o rei, veem o que Kardec não viu ... ) Dentro dessa estratégia, intenta-se jogar Roustaing contra Kardec, e vice-versa. Assim, lembrando-me do 72º aniversário da desencarnação de Emilie Collignon, o que pretendo é destacar, uma vez mais, a sem-razão da campanha que visa ao impossível: contrapor um missionário ao outro.
Nessa ingente e primordial preocupação, os negadores de Roustaing iniciam a tarefa pela falsa e infundada afirmação de que Allan Kardec lhe opôs definitivas e peremptórias restrições. Muito já se tem provado em contrário; muito já se tem evidenciado que esse quadro não encerra absolutamente a verdade dos fatos. Não vou, portanto, retomar aqui os numerosos e lídimos argumentos que contrariam essas afirmações, a começar pela própria palavra do Codificador, através da qual, no vol. 6 da “Revue Spirite”, de junho de 1886, enaltece a obra de Roustaing, apresentando-a como “trabalho considerável e que tem, para os Espíritas, o mérito de não estar, em nenhum ponto, em contradição com a doutrina ensinada pelo Livro dos Espíritos e o dos Médiuns”.
A razão dessa controvérsia em torno do magno assunto decorre principalmente da posição tomada pelo missionário de Lyon na obra “A Gênese”, em que subscreve alguns comentários sobre a constituição do corpo de Jesus. É de se notar (pelo menos este argumento deve ser repisado) que aquela apreciação encerra ponto de vista pessoal de Kardec, à margem da Revelação Espírita (“O Livro dos Espíritos”). Kardec, que tinha por vezo consultar o Espírito São Luiz diante dos aspectos mais graves da Doutrina, àquele ensejo não o fez, furtando-se assim à oportunidade de ter ouvido do Alto ensinamento que talvez o levasse a esguardar o problema por outro prisma. De qualquer forma, apesar dos pesares, o que se depara em “A Gênese” não deveria levedar a dialética dos antifluidistas. Isto porque a asserção de Kardec é, antes que tudo, fruto duma série de condicionamentos, decorrente dos conhecimentos da época. Para Kardec, “fluídico” era sinônimo de “sombra” (vide “O Céu e o Inferno”, lª Parte, cap IV, n" 14); para Kardec, “fluídico” era o oposto de tangível (vide “O Livro dos Médiuns”, cap XVI, número 189, “Médiuns de Aparição”) ; para Kardec, “fluídico” não tinha a coesão da carne material (vide “A Gênese”, cap XIV, nº 36, e cap XV, nº 65). Ora, o adjetivo “fluídico”, excogitado por Roustaing, não tem nenhuma dessas acepções. “Fluídico” não é sombra, não está em oposição a tangível e, ao contrário, possui toda a coesão da carne material. Tais ilações, porém, só vieram à luz através das pesquisas de materialização que se inauguraram a partir de 1870, com Crookes, portanto, um ano depois da desencarnação do Codificador.
Seja como for, essas angulações, que não deveriam de forma alguma sequer propiciar a controvérsia, tal a clareza merídia que desborda dos próprios fatos em favor de Roustaing, é que têm servido de “leit-motiv” aos que demandam pôr em relevo um pretenso choque entre Kardec e Roustaing. E como é dessa pretensão que me proponho a tratar neste artigo, deixemos de lado os pontos e contrapontos da tese em si.
Por mais que se objetive menoscabar a obra de Roustaing, toda tentativa cairá no vazio, pois que não se atingem objetivos desse jaez quando se tem diante da vida um autêntico missionário. Os aguarentadores passarão; Roustaing continuará inesquecível e seu trabalho prosseguirá a iluminar as almas de boa vontade, oferecendo-lhas à meditação e ao respeito supremo a figura de Jesus, concebida em expressões de grandeza e pulcritude infinitas. Em contrapartida, por mais que se pretenda marear Kardec, dada a sua posição pessoal em face da natureza do Salvador toda tentativa se esfanicará no pauperismo da própria argumentação, pois que não se há de empanar a glória de quem reencarnou para restabelecer, com luta e dignidade, inteligência e mágoa, sofrimento e amor, o verdadeiro e primitivo Cristianismo!
Acusam-nos, a nós, por tanto crermos na “Revelação da Revelação”, de deixarmos que a pervicaz invicção desloque da primeira plana a singularíssima figura de Allan Kardec. Pigmeus que somos diante de tão augusto Espírito, jamais ousaríamos a absurda pretensão... Se às vezes revelamos entusiasmo, cremos ter ele a mesma medida daquele que o próprio Kardec sentiu quando entendeu a Terceira Revelação e... Foi criticado pelos que não queriam entendê-la. Ele, entretanto, bem há de a todos compreender e perdoar, porque no ádito de seu espírito perceberá por certo que, pelo menos de nossa parte, temos pretendido tão somente arrancá-lo dessa quadra de disputa contra Roustaing, em que errônea e insistentemente os negadores da “Revelação da Revelação” têm-no buscado situar. E, a nós, há de relevar também o ousio de apresentá-lo, embora sempre respeitosamente, no papel de quem, raciocinando em caráter pessoal, passara ao largo da realidade e discordou momentaneamente de Roustaing. Raciocínio que não vela a intensa luz que, permanente, lhe flui do Espírito altamente evolucionado; raciocínio que não há de bastar para que seja arriado das alturas a que vitoriosamente foi alçado, depois que aceitou a missão de codificar a Terceira Revelação e de dela ter-se saído galhardamente. Pobres desses pigmeus que são capazes, às vezes, de deslembrar que Allan Kardec é uma das mais extraordinárias encarnações de que a Terra tem notícia, e que sua obra, seu trabalho, simboliza o fanal inexaurível com que há mais de cem anos a humanidade tem podido aliviar as trevas da sua própria intimidade consciencial!
Napoleão Bonaparte estava se fazendo coroar como imperador do mundo quando renasceu em Lyon o missionário da Revelação Espírita. Sua vinda até nós evocou, então, a de 18 séculos antes, quando Roma pisava e estorcegava o mundo, e Jesus manifestou-se fluidicamente na manjedoura abandonada. Em ambas as ocasiões o processo histórico do nosso planeta era tumultuado e ninguém mais acreditava que alguém lhe pudesse pôr cobro aos abomináveis vitupérios. Em Roma, era o vício, a barbárie e a espoliação que grassavam; em Paris, era o materialismo, a descrença e a impiedade. Jesus restabelece a Verdade e abre às criaturas o caminho da esperança e da mais lídima vitória na imortalidade; Kardec restabelece o Cristianismo e enseja aos homens a solução para todos os seus problemas físicos, morais e espirituais!
Não importa que, vez por outra, apareça quem jogue combustível à fogueira do “estudo” sobre o corpo fluídico de Jesus; não importa, principalmente, que critiquemos o fortuito parecer pessoal do Codificador; não importa que se pretenda suscitar como “controvertida” (como se ao Espiritismo fosse infensa a controvérsia) uma questão para nós clara e óbvia, que nada tem de controvertida; não importa, finalmente, que se queira, através de Roustaing, minimizar a figura gigântea de Allan Kardec, ou, através de Kardec, apoucar a de Roustaing. Nada disso importa, porque Roustaing não será jamais esquecido e muito menos Allan Kardec descerá da posição de glória a que se alcandorou pelas únicas veredas que afinal justificam essa ascensão: a do trabalho, a da inteligência, a do sofrimento, a do dever cumprido e, acima de tudo, a da tolerância e do amor a amigos e inimigos. E nem Jesus deixará de ter tido um corpo fluídico, como estamos convictos.
A figura de Emilie Collignon me fez recordar toda essa infeliz colocação do estudo em torno da magistral obra por ela psicografada, na qual, bem assimilada, qualquer leitor encontrará, com incrível facilidade, palavras e lições do mais profundo respeito aos fundamentos filosóficos, científicos e religiosos que se contêm na Revelação Espírita, codificada por Allan Kardec. Bem haja, pois, a missão de Emilie Collignon.

Luciano dos Anjos
‘Reformador’ (FEB) Nov-Dez 1974

“O DIA DO GAFANHOTO”




Em certas épocas parece que acontece uma espécie de obumbração envolvendo a nossa seara. Gafanhotos, talvez, que vêm chegando famintos de tudo e sem quererem saber de nada: ameaçam a sementeira e eclipsam os céus, impedindo a passagem da luz dos muitos sóis que formam a coorte dos Espíritos Superiores. Então começam a espocar crises, gente aparece em público comprometendo a Doutrina, desentendimentos se registam e, o que é pior que tudo, lançam por aí umas ideias esquisitóides, esdrúxulas, contrárias aos mais comezinhos princípios da Terceira Revelação. São novidades bisonhas que denotam, às vezes, a preocupação dos que nada fazem de quererem fazer qualquer coisa, antes que os que fazem realmente algo possam terminar de fazer tudo, não deixando nada para os que atrapalham. Lembro-me, por exemplo, dum cartãozinho que no ano passado me mostraram com o retrato de certo médium: Tinha lacinho, letra dourada, tudo que nem um santinho, para ser adorado e idolatrado pelos “Fiéis” espíritas... É claro que o médium homenageado
- conheço-o muito bem - jamais pediria aquilo, jamais concordaria com aquilo, se consultado fosse. Geralmente inventam essas coisas sem ouvir o homenageado. E não tardaria a aparecer um outro ainda mais empolgado com a ideia, pretendendo logo aprimorá-Ia: cunhar medalhinhas com a efígie do médium a fim de ficar perpetuada a gratidão da família espírita pelo muito que através dele temos recebido do Além. Logo pensei com meus pobres botões: daqui a pouco mais, vão sugerir um cordãozinho para enfiar a medalhinha e - não duvido! - aparecerão espíritas prontos a pendurá-lo ao pescoço. Só faltaria mandar benzer, antes, numa sessão qualquer... Esquecem-se de que o médium não deve ser incensado, não deve ser endeusado de nenhum modo. Essas coisas mais não são senão sutis perigos que põem em risco a missão do mais seguro medianeiro da Espiritualidade. Os médiuns verdadeiramente evangelizados são os primeiros a repelir esses envolvimentos contrários à própria Doutrina Espírita, os quais ressumam a velho ranço de vícios pretéritos, quando ainda vivíamos sob o jugo da Igreja medieval.
Outra mania que não perdem é a de quererem criar universidades, faculdades, academias, etc., de Espiritismo. De época em época surge o desarranjo. O Alto naturalmente não empresta cobertura a esses voos, que têm mais de vaidade e esnobismo que de trabalho e edificação, e os modernos Ícaros lá vêm penedo abaixo, asas derretidas e penas ao léu...
Recentemente me trouxeram uma mensagem do Além ditada por Carlos Imbassahy e endossada por Ismael, mandando todos apoiarem iniciativa desse tipo, que objetiva a criação duma universidade de cultura espírita! O Imbassahy, a quem conheci muito bem, deve ter largado, do lado de lá, uma daquelas suas costumeiras piadas. Sim, porque dele a mensagem não tinha nada, absolutamente nada. Meu modesto curso de Estilística foi bastante para convencer-me de que não eram do autor de “À Margem do Espiritismo” aquelas palavras. Imbassahy jamais escreveria daquele jeito. Principalmente por que... Imbassahy sabia escrever muito bem, era notável estilista. Além disso, lá vinha no meio da mensagem a referência a Ismael que, acentuava, não deixaria também de apoiar a sensacional ideia. Estranho... Muito estranho que Ismael, que até aqui em assuntos que tais só se têm manifestado na Federação Espírita Brasileira, nada nos tivesse dito dessa vez...
No fundo, o que conseguem é deixar mal companheiros como Imbassahy, porque a verdade é que sempre esses projetos mirabolantes fracassam, como aconteceu mais esta vez.
Não sei se já repararam - não por nós, criaturas encarnadas que estamos aqui eventualmente, de passagem, mas por ser a Casa de Ismael - não sei se já repararam que a Federação Espírita Brasileira nunca abona essas ideias um tanto fantásticas, às vezes faraônicas, não raro personalistas. Reclamam da FEB. Até xingam. Ela porém não se altera. O epílogo é sempre o mesmo: o sonho se esfuma, muita vez no ridículo; a FEB fica, intocável e imortal. E com ela - deixem-me confessar - um trabalhão danado, porque os Espíritos umbráticos que geralmente estão alimentando essas megalomanias vão depois bater às portas lá do Grupo Ismael para reclamar, brigar, ameaçar, etc.
Lembro-me dum companheiro que, há cerca de 10 anos, projetara com o “apoio” do Alto (e Ismael, coitado, como sempre, também estava nessa) uma Universidade piramidal, coisa assim inimaginável em termo de altura e extensão. Era um confrade abastado e, diga-se, honesto, sincero, bem intencionado. Andava era mal acompanhado. Um dia íamos pela rua Evaristo da Veiga, que passo a descrever para o leitor que desconhece o Rio: ela vai do Teatro Municipal, na Cinelândia, até os Arcos, na Lapa, estendendo-se talvez por uns 500 metros. Um dos lados é tomado inteiramente pelo Quartel General da Polícia Militar do Estado da Guanabara. É um prédio de 3 ou 4 pavimentos, tendo ao centro um pátio enorme, muito amplo. Pois bem; nosso confrade, passando pelo Quartel, ao meu lado, parou defronte, encompridou pelo quarteirão seu olhar cheio de otimismo e me disse com a maior sinceridade desse mundo:
- Aqui é que devo levantar a Universidade Espírita. O Governo localizaria a Polícia lá no subúrbio e nos entregaria o quarteirão. Os Espíritos já me disseram que tudo vai sair bem.
E pedia a minha colaboração junto ao Governo, na qualidade de Jornalista, para conseguir seu desiderato. Hoje, já desencarnado, meu bom e ingênuo amigo com certeza se integrou no grupo de lidadores que nos ajudam aqui em baixo, mas também deve ter caído em si e compreendido porque, com habilidade, procurei naquela ocasião colocar algumas reservas ao seu sonho...
Contudo, mais perigoso do que as invenções dessa natureza são o que elas podem sugerir paralelamente. Depois das universidades, das academias, etc., surgirão os Mestres, os diplomas, os reitores, os anéis de grau, as bênçãos desses anéis, as solenidades de formatura, as festas comemorativas, o baile, e não me surpreenderei se... Mandarem rezar a missa dos formandos em Espiritismo. Por outro lado, na organicidade da parte cultural, teríamos também ressuscitada a nefasta Escolástica, com todos os seus vícios e um adendo ainda mais pernicioso: o patrocínio dos Espíritos de “luz”.
Não se confunda nada disso com o aprendizado informal da Doutrina Espírita, nos lares ou nos centros, que é um imperativo da própria Doutrina Espírita. Nem se misture meus reparos à conveniência - certa e proveitosa - de se multiplicarem as chamadas escolinhas de Evangelho para as crianças (a própria FEB mantém uma), bem como a divulgação de métodos didáticos para orientadores de mocidades, métodos esses que cada instituição escolherá segundo a sua vontade.
Mas, voltemos às novidades. Ando ultimamente muito apreensivo porque me disseram que vão propor a criação do Dia de André Luiz (?!). Não me assustarei se a ideia evolver e a proposição forem transformada em Dia de Santo André Luiz. Do jeito em que as coisas vão tudo é possível. Depois mandam modelar uma imagem de Santo André Luiz e acabarão patrocinando uma quermesse para construção da Igreja de Santo André Luiz. Com a caixinha de esmolas ao lado, e tudo o mais...
Ah, meu Deus, será que é tão difícil assim passar uma vista já não digo nas cinco, mas pelo menos na principal obra de Kardec, “O Livro dos Espíritos”? A Federação Espírita Brasileira faz um sacrifício inaudito para editá-la a preço mínimo, a fim de que todos os espíritas possam lê Ia, e ainda há quem não o tenha feito? Afinal, são apenas 1.018 perguntas...
Por seu turno, André Luiz, coitado, deve ficar num constrangimento muito grande... Hino, ele já o tinha e agora vai ganhar um Dia. Ele que chegou ao lado de lá e teve a maior surpresa do mundo (digo: do outro mundo) ao perceber a total inversão dos valores morais, a ponto de ser chamado de suicida, quando não havia dado nenhum tiro na cabeça. Ele que ficou um tempo enorme de quarentena até poder ser aceito no trabalho de propagação da Doutrina. Ele, coitado, deve estar apreensivíssimo, a orar pelos seus devotos, que não tardarão a fazer do “Nosso Lar” um missal para ser recitado nos domingos, ao dobre dos sinos que então já terão sido instalados no campanário dos centros espíritas.
E, aproveitando o entusiasmo de alguns de meus confrades, eu sugiro daqui a criação também do Dia do Gafanhoto. Cada um com a sua ideia. É possível que outro lance a campanha para o Dia do Orador Espírita. Outro idealize o Dia do Doutrinador. Mais outro quererá o Dia do Presidente do Centro. Ainda outro mais lutará pelo Dia dos Desencarnados, em substituição ao de Finados. Poderíamos ter também o Dia do Obsidiado. Eu, cá por mim, lanço a ideia do Dia do Gafanhoto. Afinal, tenho as minhas razões. O gafanhoto é um ortóptero que, no fundo, merece as nossas homenagens materiais, pois, se ele não atacasse a seara, não saberíamos tão bem valorizar os benefícios da colheita quando ela é protegida e preservada. Se a nuvem deles não obstaculizasse a luz que vem do alto, não saberíamos medir o mal que a treva tem. Ora, quem tiver ideia melhor que se apresente. E é só ter cuidado para não acabar homenageado no Dia do Gafanhoto...
Luciano dos Anjos
Reformador (FEB) Julho 1970

O SANGUE DE JESUS LAVA PECADOS?



Diante da insistente afirmação de certos religiosos, convém meditarmos um pouco: o sangue de Jesus lava realmente os nossos pecados?
Antes de tudo, observemos que essa concepção é um resquício dos hábitos dos tempos antigos. A própria Bíblia é pródiga em relatos desses sacrifícios, havendo como meio de honrar a Deus ou demonstrar-Lhe temor e submissão.
O passar dos séculos aboliu tão monstruosos costumes, mas seu reflexo chega até os nossos dias, existindo até certos ritos grotescos que ainda adotam sacrifícios de animais em suas práticas ditas religiosas. Assim se explica por que certas seitas cristãs ainda se apegam a essa concepção materializada do sangue do redentor crucificado expungindo as máculas dos pecadores.
À luz da sã razão, contudo, haverá fundamento em tal modo de pensar? Evidentemente, não! É sempre o resultado do comodismo humano, tentando transferir a outrem o aziago produto de nossas iniquidades ou o esforço que nos compete para empreender nossa evolução.
Logo quem viria derramar o seu sangue, como uma imolação de altar, para salvar os pecadores?! O justo por excelência, o Filho amado e imáculo do Pai, ao passo que nós outros, os verdadeiros culpados, não tendo a suficiente decisão e força moral para arcar com as consequências de nossos erros, nos refugiaríamos numa covarde omissão, preferindo a eterna dependência para com Aquele que teve a coragem de tomar sobre si o peso de nossas seculares defecções?
Há cabeça pensante que possa aceitar tal aberração?
Mas não é apenas o raciocínio que nos força a retificar concepções nesse sentido, também os fatos. Pois se é o sangue derramado do divinal Cordeiro que há de operar a ablução da nódoa de nossos pecados, já devia há muito ter lavado os que tivesse de lavar e deixado de limpar os que não o pudesse. No entanto, passados que são quase vinte séculos do seu derramamento, o que é que vemos? A mesma Humanidade ainda suando e lutando, gemendo e arcando com suas responsabilidades, amealhando cada indivíduo seu progresso à custa do esforço próprio.
Mas então - indaga-se - por que se vê tão repetida aquela afirmação, do resgate do pecador pelo poder do sangue do excelso crucificado? E não asseverou Ele próprio: ‘Isto é o meu sangue, o sangue do Novo Testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos pecados’ (Mateus 26:28)?
A explicação é fácil, desde que se procure o espírito que vivifica, em vez da letra que mata. O mal de muitos religiosos, mormente dentre as seitas reformistas, é que se apegam a uma passagem isolada das Escrituras e constroem todo o arcabouço de crença e opinião baseado unicamente nela. No caso em tela, deveriam notar que o versículo seguinte, nº 29. diz assim: “E digo-vos que, desde agora, não beberei deste fruto da vida, até àquele dia em que o beba de novo convosco no reino de meu Pai”. Isto mostra que Jesus dirigia suas vistas para o futuro da Humanidade. Não estava preocupado apenas com os pecados passados e presentes (àquela época) das ovelhas que o Pai lhe confiara, mas que trabalhava com a leva de alguns bilhões de almas, que muito tinham ainda que lutar, sofrer e aprender, no curso de encarnações sucessivas, neste orbe.
O seu sangue não teve, enfim, um valor intrínseco na remissão dos pecados, mas extrínseco, como um testemunho necessário, em reforço dos princípios que pregava, dentre os quais se sobressaem o amor, a tolerância, a humildade e a firmeza na virtude, sustentados até às últimas consequências.
Como ensinava sempre que possível através de símbolos e ilustrações, aproveitou aquela oportunidade, que seria talvez a última em fraterno colóquio com os discípulos, antes do drama do calvário, para encorajá-los, dizendo-lhes que não se atemorizassem com a aparente derrota que viria com o seu extermínio físico, porquanto essa vida Ela a entregava conscientemente, como mais um exemplo ‘para remissão de pecados’, isto é, para que nós mesmos, amparados em suas demonstrações, nos redimamos do jugo do pecado pelo próprio esforço.
Em suma, o sangue que lava nossos pecados é o nosso mesmo, repetidamente utilizado ou derramado quantas vezes sejam necessárias, nas encarnações expiatórias, provacionais ou missionárias, até que um dia venhamos a alcançar a necessária pureza para usufruir de novo a excelsa companhia do Mestre, no reino da Luz!..

Lauro F. Carvalho
Reformador (FEB) Abril 1981.