Maio de
1915
Depois
do longo sono do inverno torno, a terra a vestir-se de suas galas.
No vasto
jardim publico que se estende sob minhas janelas, às moitas de flores
brilhantes alternam com as verdes folhagens. Os cisnes deslizam majestosamente
no tranqüilo lençol das águas, e, nos altos ramos, as aves canoras, como que inebriadas,
se entregam a intermináveis concertos. Uma suave claridade envolve todos as
coisas, enquanto ao longe, na linha de frente, o fumo da peleja rasteja o sol,
e encobre o céu.
Estamos
em Maio, mês de Joana d’Arc, assim chamados porque nele se reúnem as datas dos
mais memoráveis acontecimentos da vida da heroína: 7 e 8, libertação de Orleans
; 24, sua prisão em Compiègne; 30 o seu martírio em Ruão.
Nesta
época do ano, meu pensamento comovido se dirige sempre à Virgem Lorena como a
um tipo de força e beleza moral. Nela se reúnem as qualidade mais antagônicas
na aparência: energia e sensibilidade, firmeza e candura, idealismo e senso
pratico. Invoco-lhe o espírito; medito no seu sacrifício.
Nos
dolorosos transes por que passa a França, essa invocação toma caráter geral e
grandioso; é o supremo apelo de uma nação ameaçado, calcado aos pés por
sanguinário inimigo; é o grito de angustia de um povo que não quer sucumbir e
que implora o auxilio dos poderes celestes, das forças invisíveis.
Antes da
guerra praticava-se, sem duvida, o culto de Joana; numerosos eram os fieis;
mas, entre estes, muitos consideravam os fatos de sua vida como coisas vagas,
longínquas, quase lendárias, esbatidas pelo remoto do tempo.
As
tentativas de monopolização da heroína pelo clero católica tinham levantado
contra ela um partido político inteiro.
A
proposta de criar uma festa nacional para comemoram-lhe a memória dormia ha
mais décadas no arquivo da Câmara. Um enxame de críticos meticulosos e
malévolos atirou-se aos pormenores de sua historia, para contesta-os,
denegri-los, ou pelo menos lhes empanar o brilho.
Um
Anatole France a apresentava aos nossos contemporâneos como uma mística quase
idiota; Thalamas chegava mesmo a injuria-a. Hanotaux referia-se a ela mais
dignamente, mas queria fazê-la passar por instrumento das ordens religiosas
mendicantes, o que era pura fantasia.
O
Messias da nossa terra, admirado e glorificado pelo mundo inteiro, chegaram os
Franceses a transformar em assunto de polemica e discórdia.
A
mutação hoje é completa. Sob a tempestade de ferro e fogo que a esmaga, na
angustia que a estrangula, a França em peso volve: o pensamento para Joana e
lhe invoca o socorro.
Escoram-lhe
que salve segunda vez a pátria invadida.
A esses
apelos acudindo do seio do espaço, ela paira sobre nossas misérias e dores para
as atenuar e consolar.Faz mais: á frente de um exercito invisível, opera na
linha de frente, transmitindo aos nossos soldados a chama sagrada que a abrasa,
arrastando-os ao combate, á Vitória.
Entre os
espíritos que a rodeiam, há poderosos e bem-aventurados; ela, porém, a todos
domina com a sua sublime energia. A filha de Deus tomou a peito a nossa causa.
Certa de tal auxilio na terrível luta em que se empenhou, a França não
sucumbira.
E
sabe-se tudo quanto devem sofrer esses nobres Espíritos com o contacto da
terra? A natureza deles, sutil, purificada lhes torna aflitivas a permanência
em nosso mundo inferior. Precisam de constante esforço de vontade para se
manterem na sua atmosfera saturada de mãos pensamentos e de fluidos grosseiros,
agravados ainda pelas vibrações das paixões violentas desencadeadas pela atual
guerra.
Acrescentai
a isso o espetáculo das chacinas, os montes de cadáveres, os estertores dos
moribundos, os gritos lancinantes dos feridos, a vista das medonhas chagas
produzidas pelos explosivos por todas as maquinas de morte que consigo
acarretam os exércitos modernos.
Que de
pungentes emoções por conter, por dominar! Joana presenciou, sem duvida, na
idade media, cenas desse gênero, mas em proporções muito menores!
Ela
reagirá energicamente contra qualquer falecimento, pois, diz ela, tudo se torna
secundário, tudo desaparece ante o fim essencial, o fim por alcançar: a
libertação da pátria.
A
irradiação da sua força fluídica estende sobre todos, até sobre os ingleses,
ora nossos irmãos de armas. Entre os nossos soldados, alguns, dotados de
faculdades psíquicas, a vêem passar no fumo das pelejas; todos, porém,
intuitivamente, sentem a presença e nela põem a sua suprema esperança. Dai as
qualidades heróicas desenvolvidas, qualidades essas que causam decepção aos
alemães, assombro a todos os que, não sem razão aferente, acreditavam na
irremediável decadência de nossa raça.
Assim
como dominou ela o décimo quinto século, assim o vulto de Joana d'Arc dominará
o nosso tempo. E nela e por ela que se fará à união da pátria.
Ontem
ainda, como no tempo Carlos VII, a França estava desunida, dilacerada por
facções políticas geradas pela cobiça, por apetites inconfessáveis. Na hora do
perigo, tudo o se desfez em fumo e calou-se, para deixar que pais fizesse ouvir
sua voz e seus apelos aos poderes do alto.
Os
próprios sectários do radicalismo, que ainda combatiam Joana d'Arc no
Palais-Bourbon, se voltam para ela reverentemente.
A 26 de
Abril, o senador Fabre escrevia; Mauricio Barres: Acabo de receber uma carta do
Sr. Leon Bourgeois em que me diz: Podeis contar com a minha cordial adesão á
festa nacional de Joana d'Arc e acrescentava: Eis, pois, conquistados Hervé,
Clemenceau e Bourgeois. Joana d'Arc nos protege. todos. Certos políticos já
vêem próxima a hora em que o governo, apoiando-se em todos os partidos,
glorificará em Joana essa sagrada união que tornou possível a obra libertadora.
Em compensação, outros objetam que nada se pode dizer nem fazer em honra de
Joana enquanto os Ingleses estiverem no solo francês. Para assim se exprimirem,
é mister bem pouco conheçam o sentimento de nossos aliados para com a heroína.
Desde Shakespeare, ele lhe tributou admiração sempre crescente. Todos os anos,
nas festas de Ruão, figura uma delegação inglesa e agora, que ele estabeleceram
uma de suas bases de operação nessa cidade, não deixam de manter na praça do «
Vieux-Marché», no próprio lugar do suplicio, braçadas de flores atadas por uma faixa
com as cores britânicas.
A 16 de
maio findo, o Reverendo A. Blunt. Capelão da embaixada da Inglaterra, ao depor
uma coroa aos pés da estatua eqüestre da praça alas Pirâmides, dizia:
Vimos,
como membros da colônia britânica de Paris, depor algumas flores aos pés da
estatua Joana d'Arc, a intrépida guerreira de França.
Reconhecemos
que seu espírito de patriotismo. Coragem e de sublime abnegação anima o
exercito francês de hoje e estamos convencidos de que esse espírito o levará á
Vitória.
O grande
periódico de Londres, o Times, consagrava á memória da Virgem Lorena, ha alguns
dias, um notável artigo que resume todo o pensamento inglês sobre esse nobre
assunto.
Não ha
em toda a idade media, historia mais singela e mais portentosa, mais dolorosa
tragédia do que a pobre pastorinha que, pela fé ardente, ergueu a pátria das
profundezas da humilhação e do desespero, para sofrer a mais cruel e a mais
infamante das mortes pela mão cruel de seus inimigos. A elevação e a beleza
moral do caráter de Joana lhe granjearam o coração de todos; os Ingleses se
lembram com vexame do crime e que ela foi vitima.
Não é,
porém, nem pelo amor da pátria, nem pela coragem na peleja, nem pelas visões
místicas, que o mundo inteiro glorifica Joana Arc, é porque, em época triste e
dolorosa, ela provou, por palavras e obras, que o espírito da mulher cristã
vivia ainda entre os humildes e os oprimidos e produzia profusamente
incomparáveis frutos. Algum dia houve natureza mais reta, terna, mais cândida,
mais profundamente piedosa?
Antes
mesmo que tivesse tido acesso junto ao rei e que lhe tivesse arvorado a
bandeira, o povo, por toda a parte, nela acreditava. A força da vontade, a
elevação dos pensamentos, a intensidade do entusiasmo venceram todas as
oposições.
E meiga
e complacente para com os prisioneiros. Até para os Ingleses sua alma se mostra
repleta de piedade. Convida-os a que a ela unam para uma grande cruzada contra
o inimigo da cristandade.
E
quando, com o auxilio de alguns traidores, que os houve entre seus
compatriotas, ele, a colheram numa cilada e a fizeram condenaram á morte
horrível, suas ultimas palavras foram de perdão para seus algozes.
Um
patriota francês não se exprimiria melhor Com certeza, não, Joana não tinha
ódio aos Ingleses; queria simplesmente po-los fora do território da França.
Como o diz o «Times», pensava mesmo em associa-os aos Franceses numa grande
empresa cuja direção ela tomaria. Escrevia lhes se derdes satisfação ao rei de
França, poderá ainda vir em companhia dele, onde quer que os Franceses
pratiquem o mais belo feito que jamais foi praticado pela cristandade.
Sua
clara visão, atravessando os séculos, referiria aos sucessos presentes, a essas
gigantes luta da civilização contra a barbaria, na qual tencionava intervir?
Pela
violência, pelo terror, a Alemanha quis impor ao mondo a sua horrível cultura,
essas teorias implacáveis do super-homem, de que Nietzsche se constituiu
profeta e que suprimem o que ha de mais nobre, mais poético, mais belo na alma
humana, isto é, as dualidades fidalgas e com elas a compaixão, a piedade, a
bondade. O Deus do Evangelho, que Jesus nos ensinou a amar, os Alemães quiseram
substituía-o por não se sabe que divindade lôbrega e cruel, que muito menos se
assemelha ao Deus dos cristãos do que ao Odin escandinavo em seu Vahala maculado
de sangue.
A essas
concepções de outras eras, onde ao mais grosseiro materialismo se une um
misticismo bárbaro, devemos opor, sob a égide da Virgem de Lorena, uns
espiritualismos claros e adiantados, feitos de luz, justiça e amor.
Esse
espiritualismo revelará ao mundo a lei eterna que estabelece a liberdade, a
responsabilidade de todos os entes e que lhes impõe o dever de reparar, através
de existenciais sucessivas e dolorosas, todo o mal por ele praticado.
Depois
da expiação ela assegura o ressurgimento e a partilha de todas as alegrias e
bens celestes, na justa proporção dos méritos conquistados e dos progressos
realizados.
Esta é a
doutrina que Joana preconiza; pois não se ocupa somente da libertação da
pátria. De há muitos anos coopera também no seu ressurgimento moral. Todos
aqueles que frequentam os centros em que ela se manifesta sabem com que carinho
vela por esta doutrina, anima-lhes o defensor e trabalha pela sua difusão no
mundo.
Esta
virgem inspirada cumpriu outrora missão que, rio decorrer dos séculos, havia de
servir de exemplo para todos. Vê-se hoje que o papel da mulher poderia ser o de
fortalecer o animo do homem e excitar-lhe a dedicação á pátria. De fato, no
seio da família é, sua missão mais modesta: mas a educação que dá ao filho deve
despertar-lhe atriz a energia e o valor, aumentarem-lhe o amor por todas as
virtudes que dele decorrem. Destarte se verá desenvolverem-se as energias da
nação; a fusão dos partidos tornar-se-á mais fácil, bem como a missão de todos,
unidos por um nobre ideal comum.
Desunidos
na paz, os Franceses, se reconciliaram ante o perigo. Cépticos ontem, hoje já
fazem apelos ás forças divinas e humanas capazes de regenerar a raça, aos
bafejos do alto ue vivi ficam as almas e despertam as adormecidas qualidades
viris.
Estamos
certos de que persistirá este estado de espírito. Ha, no atual momento, em a
nossa linha de frente, cerca de três milhões de homens que experimentam iguais
fadigas e afrontam perigos iguais. E impossível que as provações passadas não
constituam poderoso elo e que, unidos pelo coração e pelo pensamento não
trabalhem em comum para o ressurgimento da pátria.
Joana os
auxiliará na obtenção desse desideratum. Por seu intermédio, afirmamos nós,
far-se-á a união de todos os partidos, porque ela não é propriedade de nenhum
deles; pertence a todos, pois todos acharão em sua vida razão para a venerar.
Os realistas glorificarão a heroína fiel que e, sacrificou pelo rei; os
crentes, a enviada providencial que apareceu na hora dos desastres. Os filhos
do povo amarão a camponesa que se armou para a salvação da pátria. Os soldados
se lembrarão de que, como eles, ela sofreu e por duas vezes foi ferida: os
infelizes, que suportou todas as amarguras, todas as provações e bebeu o cálice
das dores até a lia. Nela verão todos uma manifestação da força superior, da
força eterna encarnada em urra ser humano para executar obras capazes de
levantar as inteligências e reconciliar todos os corações.
Léon
Denis
O mundo
invisível e a guerra